Por Diego Pereira de Siqueira
O Brasil é um país sem memória, é
o que muitos dizem. Anestesiados pelo futebol, o carnaval e o Big Brother, os
escândalos de corrupção se sucedem um após o outro, sem que a maioria do povo
sequer se lembre do nome dos envolvidos. O mesmo se pode dizer das nossas
figuras “históricas”.
Mas acho que isso não é por
acaso. Pelo contrário, tem a ver com o modo como foi sendo construído o Estado
brasileiro ao longo dos anos. Desde o famoso “grito da independência”, o povo
foi sistematicamente afastado do poder. A ele, só cabia obedecer e aplaudir os
“heróis da pátria”, todos saídos da elite branca e escravocrata: Pedro I e
Pedro II, Caxias, Bento Gonçalves, Tamandaré, todos eles perfeitos
representantes dessa elite, sem nada que os identificasse com a massa do povo.
Pelo contrário, gente como Caxias
foram canonizados como heróis justamente por seu papel em reprimir revoltas
populares e matar pretos. Pessoas que se levantavam contra as injustiças da
época, a infâmia da escravidão e ousavam se levantar contra os monstruosos
privilégios dessa elite, além da perseguição que eram vítimas em vida, recebiam
ainda outro castigo: o esquecimento, o desaparecimento dentro da história
oficial, aonde só cabiam os “grandes”.
Luiz Gama, o negro escravo que
chegou a advogado, é um dos maiores exemplos disso. Morreu há exatos 130 anos,
no dia 24 de agosto de 1882, na miséria absoluta, depois de uma vida inteira
dedicada à luta contra a escravidão. E lutou não suplicando para a boa vontade
e compaixão dos senhores escravocratas, e sim apelando à dignidade do escravo e
para o direito moral da revolta contra a degradação da escravidão. É dele a
célebre frase “O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata
sempre em legítima defesa”. Trazia o senso de revolta no seu sangue: nascido em
Salvador, sua mãe, Luiza Mahin, era uma ex-escrava, que sobrevivia de vender
doces e foi uma das líderes da célebre Revolta dos Malês, rebelião de escravos
muçulmanos de Salvador. Sufocada a revolta, Luiza Mahin teve que fugir de
Salvador,indo para o sul e depois desaparecendo de qualquer registro oficial,
sem nunca ter reencontrado o filho. Este, algum tempo depois, foi vendido pelo
próprio pai, para saldar uma dívida de jogo. Pelas próprias leis da época, isso
também era ilegal, pois Luiz Gama nasceu livre, filho de uma escrava
alforriada. Mas, como sempre, a lei não estava do lado dos mais fracos.
Após quase uma década de servidão
para uma família remediada de São Paulo, Luiz Gama conseguiu sua liberdade.
Passou a viver de pequenos serviços, enquanto estudava direito e passou a
desenvolver sua militância a favor da abolição. Isso na década de 1840, quando
essa causa estava longe de ser uma causa popular, contando com pouquíssimas
adesões entre a gente “instruída” da época, mesmo entre os republicanos. Usando
de seus conhecimentos em direito, aproveitava cada brecha na legislação
escravista da época para defender o interesse de seus clientes, escravos que
buscavam comprar sua liberdade. Por suas próprias contas, ele ajudou a libertar
mais de 500 escravos através de processos legais.
Precisamente por conhecer tão bem
as leis e o sistema judiciário da época, Luiz Gama não nutria nenhuma ilusão a
respeito das instituições, e sabia que a verdadeira libertação só poderia se
dar com a luta militante dos próprios escravos. Não se deixava seduzir pelas
pregações hipócritas dos moralistas de então, que criticavam a violência dos
escravos até mais do que a violência própria gerada pelos senhores de escravos.
Grande polemista, Luiz Gama deixou, em centenas de discursos e cartas, um
retrato vívido da condição degradante a que eram submetidos os seres humanos
que se viam nessa condição, e concluía daí o direito moral à revolta: “Milhões
de homens livres, nascidos como feras ou como anjos, nas fúlgidas areias da
África, roubados e escravizados, azorragados, mutilados, arrastados neste país
clássico da sagrada liberdade, assassinados impunemente, sem direitos, sem
família, sem pátria, sem religião, vendidos como bestas, espoliados em seu
trabalho, transformados em máquinas, condenados à luta d todas as horas e de
todos os dias, de todos os momentos, em proveito de especuladores cínicos, de
ladrões impudicos, de salteadores sem nome ... Quando, porém, por uma força
invencível, por um ímpeto indomável, por um movimento soberano do instinto
revoltado, levantam-se como a razão, e matam o senhor, como Lusbel mataria
Deus, são metidos no cárcere; e aí a virtude exaspera-se, a piedade contrai-se,
a liberdade confrange-se, a indignação referve, o patriotismo arma-se”.
Ao longo da sua vida, recebeu
várias ameaças de morte, vindas dos escravocratas que não conseguiam suportar a
necessidade desse “preto” vir a ameaçar as suas “propriedades”. Mas isso não o
impedia de continuar sua luta, ao mesmo tempo contra todo o sistema socioeconômico
da escravidão e pela liberdade e dignidade individual da população escravizada.
Já no final da sua vida, ao lado de Antonio Bento, funda o clube abolicionista,
precursor do grupo Caifazes, um movimento que se poderia dizer partidário do
método da ação direta e da desobediência civil: Através de uma vasta rede de
contatos, ele se infiltravam nas fazendas e convenciam os escravos a fugir,
alojando-os depois em igrejas ou em casas de simpatizantes. Depois, eles
seguiam para Santos, ajudados por ferroviários simpatizantes da causa, até
serem alojados no quilombo de Jabaquara, onde podiam seguir para outro local
onde pudessem se estabelecer definitivamente.
O seu inspirador e patrono era
Luiz Gama, que ainda na velhice não se assustava diante do uso de métodos
“radicais” para combater a escravidão e toda a instituição da qual era a base.
No entanto, não pôde viver para ver a realização de seu maior objetivo: morreu
na sua casa, localizada no bairro do Brás, aos 58 anos, deixando para seus
filhos nenhum centavo em bens materiais, mas uma história de lutas e
sacrifícios em beneficio de uma causa. Seis anos depois, a instituição da
escravidão, moribunda e já não mais interessante do ponto de vista econômico,
foi formalmente abolida, não por um ato de bondade de outra figura oficial, a
princesa Isabel, mas sim pela luta dos próprios escravos e de seus aliados
entre a população. Quando a História for escrita do jeito que deve ser, serão
figuras como Luiz Gama que serão lembrados, e não os hipócritas da conciliação
e da sociedade “oficial”.
A luta continua!
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