domingo, 5 de maio de 2013

TAMBÉM MORRE QUEM ATIRA

Por Guilherme Simões

   
 João cravejava a vítima com um olhar sangrento. Era assim que ele sabia olhar. Sabia que poderia ter consequência o crime bárbaro que cometia. E que ele é quem iria pagar em vida esse pecado tão cruel.
João nasceu na curva de São Paulo, onde “o vento encosta o lixo”. Longe da atenção da imprensa e dos secretários, subsecretários e outros profissionais do serviço ao cidadão. João não era exatamente um cidadão. Nasceu numa família fadada à desagregação. Coisa típica dessa gente sem cultura e educação, os pobres. Por isso não tinha passeio no fim de semana nem presente em data especial. João era mais um na multidão sem cara e coração da metrópole.
     Quando pela primeira vez o Conselho Tutelar foi na casa do João, a mãe dele tava chorando. O pai tinha acabado de sair. Não tinha emprego, mas era agressivo. Bateu na mãe do João porque ela perguntou sobre a mistura. João viu, mas fingiu que não viu. Não perguntou nada pra mãe. Também não tentou consola-la. Tinha muito medo do pai, que o molestou, ele e os outros 5 irmãos, durante 5 anos até ser esfaqueado pelo mais velho. 
     A moça do Conselho queria saber por que um menino de 8 anos não estava na escola e etc. A mãe se saiu prometendo que segunda feira iria fazer a matrícula do João e que estava esperando cair um dinheiro pra ela comprar o material da criança. Lápis, borracha e um caderno. A mãe comprou e o João levou o material na mão, já na outra semana. Ele tinha 8 anos e entrava na 1ª série sem saber ler. Nunca imaginara que crianças menores que ele poderiam tirar sarro dele. Ele nem sabia o que era sarro, ironia, maldade. Ele era um menino. Mas sentia uma coisa aguda lhe entrando quando as crianças alegavam saber mais coisas do que ele e que por isso eram melhores...
    João seguiu na escola até desistir, depois de incentivado pela diretora da escola estadual. João não teria o “perfil” da escola e por isso, sua situação de déficit de aprendizagem não poderia ser solucionado ali. 
-E pra onde eu levo ele? Perguntou a mãe, querendo saber o que fazer, porque aquela era a única escola estadual do bairro. Se ele tivesse que estudar no bairro vizinho, como fazer? Não dava pra pagar ônibus e nem dar outro jeito. Ficou mais um ano sem ir pra escola o menino João.
     João não poderia imaginar que aquele absurdo que estava prestes a cometer seria o próximo grande escândalo moral da sociedade brasileira, guiada pelos meios de comunicação, mas também pelas opiniões de professores, políticos e empresários. Mas João jorrava sangue no olhar. Era cruel. Sabia que era bárbaro, mas não sabia que somente 15% dos crimes em São Paulo eram cometidos por adolescentes como ele, nem que a maioria dos crimes não eram homicídios. João estava entre os 8% que cometem homicídios. Porém, era evidente que ele não sabia que dos quase 5 mil homicídios dolosos cometidos em São Paulo em 2012, 2% foram praticados por menores. Isso não importava à “sociedade”, sedenta por vingança contra os criminosos e por paz pra si própria. 
     Jamais lhe ocorreria que a redução da maioridade penal seria exigida por mais de 90% da população paulista, segundo um jornal de grande circulação, depois do que ele estava prestes a fazer. Mesmo que a redução da maioridade penal fosse inconstitucional, João não sabia o que era constituição, então não pensava nisso. Ele queria apenas ter um pouco daquilo que nunca teve. Como os outros 90% dos menores infratores, João abandonou a escola ainda no ensino fundamental. Talvez por isso não calculou que aos 13 anos ele seria sim penalizado e seu crime tinha que ser pago com 1 ano de cárcere. Iria pra Fundação Casa, onde milhares de adolescentes cumpriam “medidas sócio-educativas” para serem “reintegrados” à sociedade. Costumava ouvir que o Brasil era o país da impunidade, mas, apesar de não saber o que significava a palavra, João sabia que dois de seus 5 irmãos haviam passado poucas e boas na Fundação, pagando pecado até de antepassado. 
     Ele não pensou que, passando por ali, seria mais violentado. Que as brigas, rebeliões e mortes que presenciaria o tornariam um homem ainda mais cruel. Ele apenas queria um pouco daquilo que nunca teve. Qualquer produto banal que as propagandas quase obrigam os jovens a consumir. Não pensava nos planos do governador pra gente como ele nem poderia presumir que se tornaria o grande inimigo público na TV, nas salas de jantar, botecos, boutequins, pistas de dança, salas de aula, facebook, reuniões, conversas de todo tipo. Queria porque queria ter o tal produto. Foi roubar. Roubou e matou sem dó. Saiu correndo por alguma das avenidas que ligam o centro aos bairros da classe média. Não sabia o que fazer. Produto do roubo na mão e a filha de um cara famoso no chão.
     Um projeto de redução da maioridade penal em andamento, passeata em branco pelas ruas do bairro de classe alta. Todos querem se vingar do João. Alguém tem que pagar pelo crime. Alguém é culpado. O João?



PS: 1- o promotor que acusou João havia sido advogado de defesa de certos menores de idade que, anos antes, incendiaram um indígena que dormia na rua;
2- qualquer coincidência com a realidade nesse texto é uma mera coincidência com a realidade.

*Professor, membro da coordenação nacional do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e militante da Resistência Urbana – Frente Nacional de Movimentos)

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